quinta-feira, 25 de junho de 2015

Boechat, Malafaia e "A hora da rola", em texto de Aytron Centeno



  "E hoje, na democracia duramente conquistada à Ditadura, quem tornará caro, muito caro, o desplante de ameaçar de morte, ao vivo e nas caixas de comentários, uma deputada federal — ou qualquer outra pessoa? Quando a pichação, nos mesmos termos, da calçada da casa de um homem de TV que ousou contrariar o decálogo da mídia empresarial, merecerá algo mais do que palavras sussurradas? Ameaças que também alcançam um dos mais conhecidos jornalistas e escritores do país? E que preço pagarão aqueles militares e policiais que desonram suas fardas e cospem nos seus deveres perante o Estado Democrático de Direito ao postarem nas redes sociais exortações ao assassinato? Quem se interporá entre a civilização e a barbárie para impedir que a última estupre a primeira como parece ser o desejo da bancada BBB, a maior do congresso, a do Boi, da Bala e da Bíblia?"

Segue trechos do texto "A hora da rola", de Ayrton Centeno, extraído do Contexto Livre:

Jornalista, Boechat foi de uma imprecisão inaceitável. Que diabos de rola Malafaia deveria localizar? Seria a Stratophelia turtur mais conhecida como rola-comum? Teria que ser a rola-do-Senegal — Streptopelia senegalensis — ou bastaria uma simples rola-miniatura, a Mathula? Qual o peso da variável cromática na afanosa busca? Sim, porque o enrolado Malafaia poderia optar pela rola-de-peito-rosa, a Streptopelia lugens, ou a rola-de-olhos-vermelhos, que os ornitólogos identificam como Streptopelia semitorquata. Para depois Boechat dizer-lhe que deveria ter capturado uma insinuante rola-gemedora, a Streptopelia decipiens.

Ignora-se até mesmo se o pastor saiu à cata de ave tão esquiva. Tampouco se esclareceu como o pipilar da rola aplacaria a ansiedade de Malafaia. Por isto mesmo, o bom pastor pode ter ignorado a prescrição e perseverado na sua trilha. Sem nenhum cajado, apenas munido das próprias forças para enfrentar e vencer os demônios que urdem o sequestro da alma daquele homem de Deus.

Significa, então, que o destampatório de Boechat caiu no vazio? Suspeito que não. Pilhérias à parte, ele apontou o caminho. Não necessariamente para a adoção do desaforo como prática cotidiana visando a definição de litígios. Mas para cravar um marco, balizar um limite: daqui nem um passo mais atrás. A proposta está posta, resta saber se haverá quem a assuma e honre.

Quem peitará o fascismo ascendente? Quem o denunciará em todas as frentes, formas e momentos? Nas noites da ditadura, uma aterrorizada Marília Pêra ouvia berros na frente de casa: “Marília, vamos te matar!” Compreende-se, eram as trevas e os fascistas estavam com as mãos livres para punir sem punição. E, hoje, na democracia, quem tornará caro, muito caro, o desplante de ameaçar de morte, ao vivo e nas caixas de comentários, uma deputada federal — ou qualquer outra pessoa? Quando a pichação, nos mesmos termos, da calçada da casa de um homem de TV que ousou contrariar o decálogo da mídia empresarial, merecerá algo mais do que palavras sussurradas? Ameaças que também alcançam um dos mais conhecidos jornalistas e escritores do país? E que preço pagarão aqueles militares e policiais que desonram suas fardas e cospem nos seus deveres perante o Estado Democrático de Direito ao postarem nas redes sociais exortações ao assassinato? Quem se interporá entre a civilização e a barbárie para impedir que a última estupre a primeira como parece ser o desejo da bancada BBB, a maior do congresso, a do Boi, da Bala e da Bíblia?

Quem contestará, pelo Direito e com o Direito, a banalização de prisões por parte de uma Justiça partidarizada que mais aparenta portar um tapa-olho de pirata e não a venda sobre os dois olhos da efígie que a interpreta? Quando o Supremo Tribunal Federal deixará de julgar com um olho no Direito e outro na direita para assumir plenamente sua função de protetor dos direitos do cidadão? Quem informará ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal que o fato de procuradores e agentes engajados explicitamente na campanha da chapa presidencial derrotada de 2014 não os qualifica para investigar aqueles que os venceram?

Alguém avisará, no interior de um governo que empanturra corporações midiáticas com publicidade oficial, que corvos arrancam os olhos daqueles que os criam? Quem explicará ao centro do poder que não é possível jogar o peso da disputa por corações e mentes nas costas da blogosfera progressista que, com bodoques, enfrenta diariamente as Panzer Divisions da ofensiva midiática? Quem confrontará as forças que levaram Getúlio ao suicídio, golpearam Jango, aliaram-se à ditadura e tentam destruir os governos que, aos trancos e barrancos, transformaram o Brasil em uma nação menos feroz com seus pobres? Quis o destino que um partido, acusado de atrasado e intolerante, fosse aquele que mais combateu o atraso e a intolerância. Onde anda? E onde se enfiaram as todas as vozes comprometidas com a agenda civilizatória, de todas as siglas, quando o atraso urra nas nossas portas?

The Second Coming, o mais famoso poema de W. B. Yeats e o único que conheço e me atrevo a citar, foi escrito na Europa há quase 100 anos mas parece que foi ontem e no Brasil. Sobretudo por dois versos, quando diz algo como “os melhores carecem de convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade passional”. É uma fotografia de 2015. A um desses entupidos de passionalidade, Boechat respondeu na bucha. E, sem querer, estabeleceu um desafio na arena política. Há mais rolas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. Todas aguardando invocação.

Uma coisa é certa: esta batalha não será ganha por gente que pensa com as pernas. Não será ganha debaixo da cama. É um lugar que acumula mofo, imundície e covardia. E nenhum desses elementos serve à luta política.

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