sábado, 27 de agosto de 2016

Jessé Souza, Doutor em Sociologia e Escritor, faz uma radiografia do Golpe da Direita cínica em entrevista a Paulo Henrique Amorim



Da Gazeta do Povo
 
por José Carlos Fernandes
 
Os últimos seis meses foram de tormentas para o sociólogo potiguar Jessé Souza, 55 anos. 
Sua obra – até então festejada nos redutos acadêmicos – tem saído das estantes direto para
 as mãos daqueles que procuram uma explicação para o caos econômico e político em que 
se meteu o país. O que diz nem sempre agrada. Algumas polêmicas rendem réplicas e 
tréplicas nas páginas dos jornais, acrescidas de golpes baixos nas redes sociais e menções 
nas apaixonadas rinhas políticas da era Lava Jato. “Até agora, só me xingaram. Estou à 
espera de um debate de verdade”, provoca o autor de A tolice da inteligência brasileira, 
A ralé brasileira e de Os batalhadores brasileiros.

Entre suas teses que mexem com o juízo dos detratores está a de que o maior problema do 
Brasil não é a corrupção – como proclamam multidões em fúria, alguns decibéis acima do normal –, 
mas a desigualdade. Séculos de convivência com diferenças oceânicas entre ricos e pobres 
teriam naturalizado a violação de direitos mais básicos e o sistema de privilégios para o 1% de 
endinheirados. Nada de novo, não fosse o desdobramento de sua afirmação.


Para Souza, paralelo às redes de indignação o que pulsa é o desejo de desmanchar políticas sociais
 nascidas de diminuir as distâncias entre os brasileiros. Não vem de hoje. Foi assim com Vargas, 
com Jango e agora com Dilma. As classes médias, afirma, se rendem ao discurso moralizador 
sem perceber que estão sendo usadas pelos donos do capital. Julgando se diferenciar dos corruptos, 
nada mais estariam fazendo do que o jogo dos grupos que reivindicam um Estado que funcione 
a seu favor. Ao bater as panelas da moralidade, entende, os médios alimentam a ilusão de que 
estão mais próximos das elites, com as quais estabelecem um misto de admiração e
 ressentimento. “É uma relação sadomasoquista”, resume.

Jessé Souza – atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – esteve 
em Curitiba há duas semanas, para uma aula magna do curso de Direito da UFPR. As 200 
cadeiras do auditório do Prédio Histórico foram insuficientes para as fileiras de interessados
 em ouvi-lo. A maioria teve de se contentar com telões. É tudo novo para o pesquisador, 
mas não inesperado. Ao longo de 20 anos, ele se entregou a uma tarefa quase insana – desmontar 
olhar sobre o Brasil e os brasileiros cunhado por papas como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque 
e Raymundo Faoro, autores que a seu ver se prestam a reforçar, sem bases científicas, o
 sentimento de inferioridade nacional. Joga água fervendo em máximas como a do 
brasileiro cordial, dado a dar jeitinho em tudo e a levantar vantagem. “Essas ideias são
 construções que só servem para desencadear nosso complexo de vira-lata”.

Confira trechos de entrevista dada à Gazeta do Povo:

Como o senhor lida com as oposições raivosas a suas teses?

Foi difícil para mim no campo universitário, mas a rejeição, de algum modo, me deu força 
para continuar. Ainda não recebi nenhuma crítica argumentativa. Não houve debate. 
Ganhei foi xingamentos. Aguardo algo que seja de alto nível, o que o Brasil precisa 
muito nessa hora. Estamos diante de um ponto importante – saber como a questão 
da corrupção foi construída. Houve uma naturalização de que esse é o grande impasse 
do Brasil. Nosso complexo de vira-lata foi despertado.

Onde quer chegar?

Quero mostrar que é uma mentira o que os intelectuais e as ciências sociais dizem sobre o Brasil. 
Com raras exceções, o que afirmam é que o grande problema é a corrupção. Isso é uma 
manipulação. Nada prova que nosso país seja mais corrupto que os EUA. Minha tese: os intelectuais
 montaram uma tropa de choque para justificar a existência de menos de 1% de endinheirados, 
que mandam e desmandam na Nação. A corrupção existe em todo lugar, não é uma jabuticaba. 
O interesse em dramatizar o tema é um mecanismo dos mais ricos para imbecilizar a sociedade. 
Só as elites ganham nessa luta de classes invisível.

A Lava Jato seria a dramatização da corrupção...

A dramatização mais perfeita. Chamo de Nova República do Galeão, numa alusão à república montada no aeroporto [por oficiais da FAB, em 1954], acima da lei, acima da Constituição, criada em nome da limpeza do país, de conter o “Mar de Lama”...

No Brasil, existe um esquema do golpe, montado. Os componentes são os mesmos. A diferença 
do golpe que matou Getúlio Vargas e o que desencadeou o Golpe de 64 é que agora deixa de ser
 militar e se torna civil e jurídico. A função é a mesma – retirar o poder de qualquer partido que
 tenha alguma preocupação popular. Era o caso do Getúlio, do Jango, da Dilma.

O termo “golpe de direita” envelheceu?

Não usaria nesse caso categorias como direita ou esquerda. Diria que é um país em que meia dúzia 
de endinheirados mandam, compram parte do Congresso, põem a imprensa no bolso, fazem o que 
querem, como os grandes senhores de escravos. São espertos. Montaram uma tradição intelectual 
para legitimar esse modelo.

O tema da corrupção só entra em pauta no momento em que a elite econômica perde o controle do 
Estado. A classe média é a que mais se torna imbecil. É explorada por esse grupo e depois vai 
defendê-lo. Que diabos ganha? A classe média faz papel de tola. É explorada por juros, impostos, 
sai às ruas. Tem a ilusão de estar lutando pela moralidade, de ser mais decente.

É uma relação sadomasoquista, uma “gratificação substitutiva”, como diria Freud. Infantil, esse 
grupo imita os ricos, pelos quais tem ressentimento e admiração. É uma classe que se julga da 
Noruega. Preocupa-se com a morte das baleias, mas não se sensibiliza com a miséria a sua volta.

Se não é a corrupção, qual o nosso problema?

Nosso problema tem a ver com a classe de excluídos, que estudei em A ralé brasileira: quem é e 
como vive (2009). Uso o termo “ralé” para provocar e mostrar que a classe média que se diz 
guardiã da moralidade explora os excluídos. Usa-os para cuidar dos filhos, para comer pizza 
quentinha, matando dois motoboys por dia. Quero pôr a classe média no espelho: “Olhe o que 
você constrói, quem você abandona, bem você, que tira onda de campeão da moralidade”. 
A classe média vampiriza esses trabalhadores. É farisaica. E a imprensa é o braço principal 
dessa elite que nos dá sua dose de veneno midiático a cada dia. Dizemos que o problema é a
 corrupção, mas ao mesmo tempo mantemos uma das sociedades mais perversas e 
desiguais do planeta.

O senhor foi formado nas ideias de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Raymundo Faoro. 
Por que se estranhou com seus mestres?

Estudei esses autores com obsessão, dois-três anos cada um, quando estava na Alemanha, 
na década de 1990. Em especial o Gilberto Freyre. É o mais inteligente e o que mais me intrigou,
 por ser uma espécie de criador do Brasil moderno. Queria ter uma visão pessoal sobre o mundo 
e a sociedade brasileira. Até que me dei conta de que estava entrando na esparrela que o Freyre
 havia criado. Fiquei quase um mês paralisado. Meu projeto acabou ali. Só me restava fazer a 
crítica desse pessoal. Como os demais brasileiros, eu tinha sido educado para me ver como um 
povo vira-lata, emocional, que age pelo coração. Estava diante da chance de renovar e reinterpretar o Brasil.

Não somos tão filhos de Portugal quanto imaginamos...

Dizer isso faz parte do engodo. Virou senso comum. Algumas afirmações são ridículas, não existe 
outra palavra. Raymundo Faoro diz que a corrupção vem desde Portugal, mas não havia 
corrupção lá. Como o rei poderia roubar o que era dele? A noção de soberania popular, que nos 
permite falar em corrupção, começa dois séculos depois. A questão é que se acredita nisso. 
O que molda as pessoas são as instituições e a instituição principal do Brasil, a partir 1532, é a
 Escravidão – que não existia em Portugal. Os modelos de família, de Justiça, de política, de
 economia são montados pela Escravidão, aqui de maneira distinta de Portugal. Lá a Igreja 
era mais importante do que os senhores e limitava o poder senhorial. Já entre nós os senhores 
podiam tudo, o que se mantém até hoje, de alguma maneira.

Permita lembrar algo curioso – o que os operadores de telemarketing, uma das categorias que 
aparecem em suas pesquisas – têm a dizer sobre o Brasil?

Tratei desse grupo num livro específico [Os batalhadores brasileiros, 2012], ao estudar os que 
foram alçados de modo errôneo à chamada “nova classe média”. Queria compreendê-los. 
Percebi que estávamos diante de um fenômeno – o surgimento de uma nova classe trabalhadora, 
precária, a céu aberto, sem privilégio. O telemarketing tem a ver com as mudanças tecnológicas,
 com o desaparecimento de postos de emprego e com a exploração total do trabalhador. 
Os atendentes atuam em condições exaustivas. Retira-se tudo deles.

Como definiria o que chama de “nova classe trabalhadora”?

É pobre. A humilhação para essa gente é tão presente quanto a falta de dinheiro. 
É humilhada nos serviços públicos, mas também por nós. Mudamos de lado na rua 
quando os vemos. É um ser humano sem dignidade, esquecido, sem chances digna de 
enfrentar competição. O novo trabalhador foi montado para estar nessa situação. 
De positivo, a admirável resiliência. Com o pouco que lhe foi dado, dinamizou a 
economia, deu impulso ao desenvolvimento, como não acontecia havia 60 anos.
 Fico muito impressionado com a resposta que a população deu diante do pequeno
 estímulo que recebeu.

Nesse cenário, qual o papel das religiões evangélicas?

Importante. Esse povo não é só pobre, humilhado, visto de cima para baixo, sem chances...
 Tem a religião, que se confunde com a política e com a economia. As igrejas deram a esses
 pobres a autoestima. Fez deles irmãos de Jesus, filhos de Deus. O projeto lulista deu uma 
oportunidade a essas pessoas, mas a pregação evangélica também. Não se move a sociedade 
só por transferência de renda. A autoestima dada pelas religiões ajuda a reagir, a acreditar
 probabilidade de mudar no futuro. Nosso debate é limitado, muito centrado na renda e 
pouco na dimensão simbólica, justo a que determina como a gente reage.

Diz-se que na última década o desenvolvimento se deu à custa do consumo de carros
 pelos mais pobres, por exemplo, mas não da cultura. Concorda?

Diria duas coisas. Qual é o problema de os pobres começarem a consumir? Para pobres ou 
não, o consumo é parte importante da cidadania. Tem a ver com direitos. O acesso a bens de 
consumo torna a vida boa, agradável. Em segundo lugar, estudos do Ipea mostram que nos 
últimos dez anos modificou a maneira como as pessoas imaginam a vida. Vivemos uma pequena 
revolução, porque também aumentou o capital cultural, antes concentrado na classe média. 
Com mais consumo em geral, as famílias pobres expandiram seus horizontes. Investem mais 
em educação, passam a perceber o futuro, a pensar em como sair de onde estão.

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