sábado, 13 de agosto de 2016

O “14 Bis” de Miguel Nicolelis voou no Brasil. Artigo de Conceição Lemes

Pela primeira vez no mundo, pesquisa mostra que paraplégicos podem recuperar movimentos e tato


A função da verdade é aparecer. Sempre. Mesmo que às vezes demore. Em ciência, especificamente, costuma levar tempo.

Meados da década de 1990, Estados Unidos. O laboratório do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, na Universidade Duke, em colaboração com o de John Chapin na Filadélfia, criou o paradigma moderno da interface cérebro-máquina.

Através dessa combinação, qualquer pessoa pode usar apenas a sua atividade elétrica cerebral para controlar os movimentos de braços e pernas robóticos e virtuais, ou colaborar mentalmente na execução de tarefas motoras.

Publicado em 1999, o primeiro trabalho de Nicolelis, envolvendo cérebro-máquina, foi em ratos.

12 de junho de 2014, Brasil. Abertura da Copa do Mundo, Arena Corinthians, mais conhecida como Itaquerão, em São Paulo.

Projeto Andar de Novo, liderado por Nicolelis e que envolveu 150 participantes (entre os quais, pesquisadores e técnicos) de 25 países, realizou uma demonstração científica inédita.

Usando a tecnologia interface cérebro-máquina, o jovem Juliano Pinto, com o corpo paralisado do peito para baixo, deu o chute inaugural da Copa.

Nas pernas, Juliano “vestia” um exoesqueleto. É uma “roupa robótica”.

Na cabeça, por baixo do capacete, múltiplos eletrodos (não invasivos) embutidos numa espécie de touca aplicada no couro cabeludo, imediatamente acima das áreas cerebrais envolvidas no controle motor.

Essa tecnologia permitiu que Juliano controlasse os movimentos do exoesqueleto e, ao mesmo tempo, recebesse dele sinais táteis nos pés e, assim, desse o pontapé inicial.

A Fifa, por motivos até hoje não esclarecidos, fez de tudo para derrubar a apresentação. Após longa batalha, só concedeu 29 segundos. Por razões misteriosas também, apenas 8 segundos foram exibidos na transmissão ao vivo, pela TV.

De pronto, a grande mídia e alguns cientistas brasileiros tacharam o êxito como “fracasso”.

Enquanto o feito era saudado na Europa e EUA, aqui Nicolelis e equipe sofreram toda a sorte de difamação e injúrias.

Uma perseguição implacável. Por inveja, preconceito — ele escolheu o Nordeste para erguer o Instituto Internacional de Neurociência —, sabotagem — o nosso vira-latismo crônico insiste em desprezar o que é feito aqui —, picuinhas acadêmicas e suas posições políticas progressistas.

Mas, desespero dos desafetos e alegria de todos os que torcem por um mundo realmente melhor, 2 anos, 1 mês e 29 dias depois, a verdade apareceu.

11 de agosto de 2016. Nessa quinta-feira, a revista Scientific Reports, da Nature, publicou o primeiro artigo científico sobre Projeto Andar de Novo. São 16 páginas.

Nicolelis - Nature  combinação

O artigo relata os resultados obtidos por oito pacientes paraplégicos crônicos, entre os quais o Juliano Pinto, que treinaram durante um ano (janeiro a dezembro de 2014), usando interfaces cérebro-máquina. Entre elas, a realidade virtual para ajudá-los a imaginar que estavam se movimentando com as suas próprias pernas.

Nicolelis - óculos virtual

No início do estudo, os pacientes (duas mulheres e seis homens):

* Tinham entre 26 e 36 anos de idade.

* Estavam paralisados por lesão medular de três anos a 13 anos.

* Sete foram classificados como portadores de lesão medular completa e um como tendo lesão incompleta.

* Nenhum havia apresentado qualquer sinal de melhora clínica com métodos tradicionais de reabilitação antes da entrada no Projeto Andar de Novo.

* Nenhum também tinha movimentos voluntários abaixo do nível da sua lesão medular no início do treinamento.

Após um ano de treinamento com sistemas controlados pela atividade cerebral, incluindo um exoesqueleto motorizado e realidade virtual, descobertas fantásticas.



Os pacientes readquiriram a habilidade de mover voluntariamente alguns músculos das pernas e sentir o tato e dor.

Também recuperaram grau importante dos movimentos peristálticos do intestino e do controle da bexiga, além de melhora sensível das funções cardiovasculares.

Conclusão: Pela primeira vez no mundo, um estudo mostra a recuperação neurológica parcial em pacientes portadores de paraplegia completa, com base no uso de interfaces cérebro-máquina.

Uma esperança concreta para milhões de pessoas, que, até agora, tinham como única perspectiva a cadeira de rodas.

Nicolelis é pesquisador e professor da Duke University (EUA) e coordenador do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) (Brasil).

Eu o entrevistei sobre os resultados da pesquisa e o seu significado para milhões de pessoas com lesão medular.

— Professor, o trabalho publicado nessa quinta-feira é o coroamento de três anos e meio do Projeto Andar de Novo?

Miguel Nicolelis — Mais do que isso. É o coroamento de 18 anos de pesquisa de interface cérebro-máquina, área que eu e John Chapin criamos.

Em 1999, quando publicamos o primeiro trabalho em ratos, nós achávamos que o máximo que se conseguiria era criar métodos para tecnologias assistidas, permitindo que pacientes severamente paralisados pudessem readquirir mobilidade por meios artificiais. Por exemplo, membros protéticos ou exoesqueletos controlados diretamente pela atividade dos seus cérebros.

Lá atrás, a gente nunca imaginou que o treinamento contínuo com interface máquina-cérebro pudesse levar a qualquer tipo de melhora clínica.

É justamente essa descoberta que relatamos neste trabalho publicado agora. É o primeiro de uma série. Outros já estão a caminho. Um inclusive já foi aceito.

— Em resumo, o que demonstrou o estudo até agora?

— Aparentemente a prática crônica de reabilitação pode levar à melhoria da sensibilidade e à reativação do controle voluntário muscular abaixo da lesão em níveis que ninguém jamais registrou na literatura de lesões medulares.

— Eu assisti ao vídeo da pesquisa. É possível ver pacientes fazendo movimentos nas pernas. Eles tinham esses movimentos antes?

— Nenhum deles tinha qualquer movimento das pernas. Sete deles foram classificados por anos — de 3 a 13 — como paraplégicos completos. No momento em que começaram a ter esses movimentos, eles passaram também a ter sensibilidade nos mesmos segmentos do corpo abaixo da lesão.

— Exatamente começou esse trabalho com os pacientes?

— Desde dezembro de 2013. Nos primeiros 12 meses (janeiro a dezembro de 2014), quatro deles foram reclassificados como paraplégicos incompletos e mudaram de categoria.

Mas como a gente continua a acompanhá-los, agora em junho de 2016 todos os sete foram reclassificados como paraplégicos parciais. Todos os pacientes tiveram recuperação significativa.

Cada um mudou num momento diferente. O tempo de recuperação também é diferente de um para outro, assim como as lesões são diferentes.

— São sete ou oito pacientes?

— Eram oito, mas um teve de deixar o projeto no final do ano passado, porque mudou de cidade.

— O grupo é o mesmo desde o início?

— O mesmo.

— Então, quando o senhor começou o projeto não cogitava essa melhora real dos pacientes?

— Ninguém no mundo esperava por isso. Eu nunca falei a respeito antes porque imaginei que isso não seria possível.

— Em que momento percebeu que estava ocorrendo algo além do previsto inicialmente?

— Logo depois da Copa, quando refizemos os exames neurológicos. Á medida que o tempo foi passando, fomos percebendo que eles foram obtendo ganhos. Recuperando a possibilidade de controlar voluntariamente os músculos dos quadris, das pernas… Tem um paciente no vídeo que consegue mover ambas as pernas, envolvendo o quadril, o joelho e até o tornozelo. Ele estava há 13 anos numa cadeira de rodas sem movimentação alguma!



— O tempo de lesão interfere? E a idade?

— Eles são jovens, numa faixa etária que vai de 26 a 36 anos. Mas o mais importante é o tempo de lesão. Variava de 3 a 13 anos quando entraram no projeto.

Eles são os chamados pacientes crônicos. Já tinham feito reabilitação convencional e não melhoraram nada clinicamente.

O mais interessante é que a melhora não se restringe à parte motora e sensorial. Há também um componente visceral muito importante. Esses pacientes recuperaram movimentação peristáltica intestinal. Adquiriram melhor controle da bexiga. Tiveram melhoras cardiovasculares. Enfim, uma recuperação fisiológica global. Algo inédito até agora.

— Para o paciente conseguir esses resultados, qual a duração do tratamento?

— No paciente que parou de treinar, a gente já nota queda de performance. Portanto, é um caso mostrando que o treinamento é essencial.

— Então tem de ter continuidade?

— Os efeitos não desaparecem imediatamente se o paciente parar. Leva alguns meses para começar a haver algum tipo de regressão. Mas até onde as melhoras continuam a gente não sabe. Até o momento a gente não tem um platô.

— Qual é a sua hipótese para essa melhora?

— Essa prática de usar o cérebro para controlar um sistema e receber simultaneamente feedback visual e tátil leva a um processo de plasticidade cortical. E como os nossos pacientes estavam andando com exoesqueleto, que é um equipamento robótico, provavelmente houve plasticidade de medula espinhal também. Ou seja, se sobra algum nervo numa lesão espinhal talvez seja possível usá-lo para restabelecer um contato do córtex com os músculos.

— Professor, como a gente explica para o leigo a questão do exoesqueleto, da interface cérebro-máquina?

— Basicamente o cérebro é como se fosse uma orquestra sinfônica que muda a configuração dos seus instrumentos cada vez que ele produz uma nota musical.

É o único sistema que a gente conhece que é capaz de se autorremodelar para otimizar a sua performance.

Então, a ênfase não é no exoesqueleto, na máquina. É no treinamento mental que faz o paciente tentar readquirir a capacidade de imaginar movimentos nas pernas.

O que interessa é o que o paciente faz mentalmente para isso e os sinais que ele emite.

Assim, por meio de eletroencefalograma, a gente captura esses sinais. É o suficiente para criar uma sensação de realismo de marcha autônoma.

O cérebro precisa de feedback, precisa de sinais do mundo para se autoconfigurar.

Nós inserimos feedback tátil na camiseta especial que o paciente usa — há sensores dela no pé. À medida que caminha, ele vai recebendo feedback tátil do contato do pé no solo, na pele dos braços.

E com isso a gente criou uma ilusão. O cérebro criou uma sensação de membro fantasma. E essa sensação dá a nítida impressão para o paciente de que ele está andando pelos próprios meios, que ele não está dependendo da tecnologia assistida que nós usamos.

Eu acho que isso que foi essencial para disparar o processo de plasticidade cerebral.

Quando os pacientes chegaram aqui, eles não tinham mais no córtex motor a representação dos membros inferiores ou a ideia de se locomover.

Isso tinha sido removido quase que completamente do cérebro. O nosso treinamento reinseriu no cérebro deles esse conceito de ter pernas e caminhar.

— O que significa esse trabalho para as pessoas com lesões medulares?

— Abre uma perspectiva enorme para o mundo da reabilitação de lesões medulares. Existem no mundo pelo menos 25 milhões de pessoas sofrendo com paralisia severa, principalmente medula espinal. Existem também centenas de milhões de pessoas com déficit motor decorrente de derrames e outras doenças neurovegetativas.

— E para a ciência?

— Esse trabalho é um coroamento daquilo que foi tentado no mundo. É mais um componente de esperança para todas essas pessoas, pois mostra que o cérebro tem formas de se autorreorganizar e tentar compensar o que foi perdido.

Nós precisamos entender qual é a linguagem da plasticidade cerebral para basicamente poder tirar vantagem dela e oferecer opções terapêuticas que aumentem a qualidade de vida.

E isso é o que a ciência faz. A ciência só tem sentido se ela é focada no bem da humanidade.

A propósito. Todo esse trabalho clínico foi totalmente desenvolvido no Brasil.

Sem a infraestrutura que foi criada no Instituto de Neurociência de Natal, nós nunca teríamos conseguido fazer esse projeto aqui.

— Professor, especialmente nos últimos dois anos, o senhor sofreu ataque feroz por parte de alguns colegas desafetos e da grande mídia. O que diria para eles agora?

— A melhor resposta é o resultado da pesquisa. Ela demonstrou uma coisa que nunca tinha sido demonstrada antes no mundo. Além de sermos os pioneiros, os resultados foram em tempo recorde. A nossa perspectiva era isso ocorrer em cinco anos. Eles vieram com três anos e meio, já o Projeto Andar de Novo começou em dezembro de 2013.

— E a tua equipe como está, já que ela também enfrentou uma pressão tremenda?

— Nós todos estamos muito felizes. Além da descoberta inédita, ele foi feito completamente aqui no Brasil. A ideia veio da minha carreira da Duke.

Mas este trabalho tem DNA brasileiro. Eu considero este trabalho o mais importante da minha carreira. O nosso “14 Bis” voou aqui.



Conceição Lemes
No Viomundo

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