O princípio básico é o de usar um argumento diversivo para defender ou atacar uma questão. É como ver os defensores da inconstitucional PEC55 distraindo os brasileiros ao fazer analogias absurdas com o orçamento doméstico de uma família – sendo que uma família não pode fazer ajuste fiscal, regular juros ou emitir moeda. E, pior, sabendo perfeitamente que o corte de gastos dentro do orçamento doméstico não gera impacto sobre a receita de uma família, ao contrário do que acontece com a economia de um país."

Artigo de J. P. Cuenca, no The Intercept, de Glenn Greenwald:
EM ROMANCES POLICIAIS, é manjada a técnica de encher a narrativa de elementos para distrair o leitor da raiz do mistério. As pistas importantes estão todas lá, desde o início. Você é que não as vê, perdidas entre tantas subtramas e personagens secundários – um inocente Coronel Mostarda na biblioteca com um punhal no bolso, por exemplo. É a mesma técnica do mágico que tamborila o ar com os dedos de pianista enquanto tira da outra manga uma carta, como um ladrão que te conta uma piada enquanto rouba a sua carteira.
Escritores chamam essas falsas pistas de “arenques vermelhos”. Diz-se que a origem da expressão inglesa (“red herrings”) vem da prática de arrastar peixes mortos por uma trilha para confundir ou testar o olfato de cães em adestramento para a caça de lebres. A tática de encher uma história de cortinas de fumaça não está presente apenas em livros de ficção – é uma falácia argumentativa bastante comum para nos convencer de qualquer coisa desde sempre.
O princípio básico é o de usar um argumento diversivo para defender ou atacar uma questão. É como ver os defensores da inconstitucional PEC55 distraindo os brasileiros ao fazer analogias absurdas com o orçamento doméstico de uma família – sendo que uma família não pode fazer ajuste fiscal, regular juros ou emitir moeda. E, pior, sabendo perfeitamente que o corte de gastos dentro do orçamento doméstico não gera impacto sobre a receita de uma família, ao contrário do que acontece com a economia de um país.
Arenques vermelhos dominam o discurso de políticos e o noticiário
E se vemos articulistas e políticos baseando todo seu discurso em arenques vermelhos, o que dizer do noticiário? Quanto melhor informados, maior a impressão de sempre perder algo fundamental. Somos submetidos diariamente a uma profusão de pistas falsas que transformam a política nacional em um teatro absurdo. As instituições derreteram ao chocar o ovo da serpente golpista e levaram com elas nossa própria percepção da realidade.
Apenas na última terça-feira no Brasil, tivemos um racha institucional sem precedentes entre o STF e um presidente do Senado réu em 11 processos, um ministro do Supremo pedindo a cabeça de outro, o anúncio de uma leonina reforma da previdência, o centro do Rio transformado num caldeirão, com policiais militares atirando bombas das janelas de uma igreja, e, para fechar o dia, imagens do convescote amistoso entre o paladino dos pachecos e o próprio Aécio Quem Não Conhece o Esquema do Aécio Neves, político quecoleciona citações na operação Lava-Jato que dão em lugar nenhum. Osalvador da pátria também trocou idéias alegremente com outro tucano – este, acusado de ter R$ 23 milhões de propina depositados na Suíça.
Um loop infinito de notícias que vamos esquecer
Bons eram os tempos em que Ivan Lessa podia escrever que “a cada quinze anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos quinze anos.” Hoje, a cada semana esquecemos o mês passado, a cada dia a semana anterior. Como, afinal, lembrar da negociata e do escândalo de ontem, se hoje há um mais espetacular – que logo também será esquecido? É uma história autofágica, não circular como um oroboro, mas como um animal disforme que se canibaliza imóvel.
Presos num loop infinito de notícias e contradições, tanto perdemos a capacidade de construir qualquer narrativa confiável, para os outros e para nós mesmos, que a própria palavra narrativa caducou em 2016 – virou sinônimo de enrolação, ladainha, proselitismo, pós-verdade.
No Brasil de 2016, não precisamos de um talentoso conspirador comoVladislav Surkov, assessor de Vladmir Putin responsável por plantar o caos político na Rússia. A confusão política que mina nossa percepção do mundo em momentos caóticos como esse é fruto de blefes simultâneos, dados por diferentes atores econômicos e políticos – pense num grupo de whatsapp com personagens como Gilmar Mendes, Zé Pilintra, Ali Kamel, Mefistófeles e os donos da banca. Quando todos têm cartas na manga, a única certeza é a de que todos os jogadores da mesa são culpados de alguma coisa.
Mesa de oligarcas que vemos de longe, de baixo, cada vez mais distantes do poder. Nossa melancólica aposta hoje é tentar decifrar seus porta-vozes, os que nos informam ao contrário. Pois aqui a máxima de Maquiavel ganha sentido imediato: os que vencem hoje contam a história. No jornalão de amanhã.
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