UM DOS ASPECTOS mais estranhos do desgastante frenesi americano com relação à Rússia é a fixação do Partido Democrata com a mudança de abordagem do Comitê Nacional Republicano (RNC) quanto ao fornecimento de armas para a Ucrânia. A controvérsia se iniciou em julho do ano passado quando o Washington Post revelou que, “a campanha de Trump operou nos bastidores na semana passada para garantir que a nova plataforma republicana não defenda o envio de armas para a Ucrânia combater a Rússia e as forças rebeldes”.
Desde então, os democratas têm usado essa mudança de linguagem como prova de que Trump e seus assessores mais próximos mantêm relações perniciosas com os russos e defendem seus interesses em detrimento dos interesses americanos. Em julho do ano passado, o senador democrata Ben Cardin, membro do Comitê de Relações Externas do Senado, escreveu uma carta ao New York Times expressando a opinião de muitos dos membros de seu partido criticando a mudança de postura do RNC, que classificou como uma “forma de pensar perigosa” que prova como Trump é controlado, ou pelo menos manipulado, pelo Kremlin. Os democratas adotaram essa tática novamente neste fim de semana frente ao reconhecimento por parte dos assessores de Trump de que oficiais de sua campanha estavam por trás da mudança na plataforma política do RNC.
A tentativa de equiparar a oposição de Trump ao armamento da Ucrânia a uma espécie de aliança dissimulada com Putin esconde um fator fundamental: uma das políticas mais firmes adotadas por Barack Obama foi recusar o fornecimento de armas letais à Ucrânia. O artigo original do Washington Post, que revelou a mudança de plataforma do RNC, disse explicitamente:
Naturalmente, o presidente Trump não é o único político contrário ao envio de armas letais para a Ucrânia. O presidente Obama decidiu não autorizar o envio, apesar de seus oficiais responsáveis pela Europa no Departamento de Estado e nas Forças Armadas recomendarem o contrário.
As primeiras reportagens sobre a controvérsia, como este artigo da NPR, também abordaram a ironia central a este debate: o armamento da Ucrânia é um desejo antigo de militaristas do Partido Republicano, como John McCain, Lindsey Graham e Marco Rubio, assim como de intervencionistas do Partido Democrata, apesar de a Casa Branca de Obama ter resistido a tais pressões firmemente:
Os congressistas republicanos aprovaram o fornecimento de armas para o governo ucraniano, mas a Casa Branca resistiu, alegando que a medida apenas encorajaria mais derramamento de sangue.
Trata-se de uma das poucas políticas do governo Obama com que a equipe de Trump parece concordar.
No final das contas, o Partido Republicano se uniu à ala militarista do Partido Democrata exigindo que Obama fornecesse armas letais para que a Ucrânia combatesse a Rússia, mas o pedido foi recusado categoricamente pelo ex-presidente. De acordo com a reportagem do New York Times de março de 2015, “o presidente Obama tem sido cada vez mais pressionado por ambos os partidos e oficiais de seu próprio governo a enviar armas para o país. Mas o presidente não está convencido de que isso ajudaria”. Como Obama permaneceu inflexível, líderes dos dois partidos ameaçaram aprovar leis que forçassem Obama a fornecer as armas para a Ucrânia.

Tradução: “Em desafio a Obama, grande parte do Congresso pressiona pelo armamento da Ucrânia”.
A abordagem com relação à Rússia (de evitar confrontos e atender aos interesses russos, não apenas na Ucrânia, mas também na Síria), que agora é considerada pela maioria dos democratas uma forma de traição, foi um dos traços mais marcantes da política externa de Obama. Mas esse fato não deve ser superestimado: Obama também tomou medidas agressivas, como as manobras para expandir o alcance da OTAN, o auxílio não letal à Ucrânia e a implantação de armamento de “defesa contra mísseis” na Romênia. Mas rejeitou a maioria das demandas para que combatesse a Rússia. Esse é um dos motivos pelos quais a “elite da política externa”, que Obama criticava e prometia repudiar à época do começo de seu mandato, estava tão insatisfeita com sua presidência.
Um extenso artigo publicado recentemente pela correspondente de relações exteriores do site Politico, Susan Glasser, sobre a guerra que está sendo travada pela “elite da política externa” de Washington contra Trump confirma essa tese de forma veemente. Pode-se dizer qualquer coisa sobre o Politico, mas não se pode negar que são extremamente competentes em dar espaço para insiders de Washington e sua covardia, garantindo anonimato para que expressem suas opiniões. Mesmo que oferecer anonimato às pessoas mais poderosas do mundo seja uma prática jornalística questionável, ela acaba por revelar o que os carreiristas de Washington pensam, mas têm medo de dizer. O artigo de Glasser, que consiste primordialmente em transmitir as opiniões de oficiais anônimos do alto escalão do governo de Obama, contém uma passagem extraordinária:

Em destaque: “[O indicado de Obama] viu muito em comum entre o tom apaziguador cético de Obama e o grande, porém vago, ‘America First’ prometido por Trump.
[Obama e Trump] chegaram à Presidência buscando melhores relações com a Rússia. ‘Há uma continuidade entre eles.’
Trump repete muito do que Obama pensava – a diferença é que ele fala de forma grosseira.
‘Não dá para ter uma conversa honesta sobre isso’.”
Em outras palavras, democratas agora combatem — e consideram traição — uma das posições em política externa mais importantes e estimadas de Barack Obama, uma postura que manteve apesar dos ataques dos líderes de ambos os partidos, assim como da comunidade de segurança nacional de Washington. A comparação não foi feita por Noam Chomsky; foi feita por um indicado de Obama.
A comunidade bipartidária da política externa ficou furiosa por Obama não ter enfrentado a Rússia de forma mais enfática e, agora, está furiosa com Trump pelo mesmo motivo (embora temam e odeiem Trump por motivos diferentes, como a ameaça que acreditam representar para a manutenção do império americano por sua combinação de inépcia, instabilidade, relações públicas nocivas, ferocidade explícita, em vez de disfarçada, e ideologia; Glasser conclui: “‘tudo aquilo pelo que trabalhei nas duas últimas décadas está sendo destruído’, me confidenciou um membro sênior do Partido Republicano”).

ISSO DEMONSTRA COMO ocorreu uma mudança fundamental no Partido Democrata após a fixação com a Grande Ameaça Russa nas eleições. Para que se entenda a extensão da mudança, basta analisar essa pesquisa da CNN publicada hoje pela manhã que mostra republicanos e democratas invertendo completamente seu posicionamento quanto à Rússia em um período de oito meses:

Tradução: “Agora, isso foi invertido, com democratas duas vezes mais propensos a considerar a Rússia uma ameaça grave [do que republicanos] (51% entre democratas, 24% entre republicanos)”.
A obsessão de democratas com a Rússia não apenas os levou a exigirem investigações sobre as alegações de hackeamento e suspeitas de conluio por parte da campanha de Trump (até agora sem nenhuma prova) — investigações que todos deveriam apoiar. Foi muito além disso: democratas se transformaram em militaristas cada vez mais assustadores — e perigosos — quando o assunto é combater o único país com um arsenal nuclear maior do que o americano e que vem imbuído de uma sensação de medo, ou cerco completo, por conta da expansão da OTAN.
Em outras palavras, os democratas que fazem parte do establishment — imbuídos de um ímpeto político e, agora, por convicção — abandonaram completamente a abordagem leniente de Obama quanto à Rússia e adotaram por completo a mentalidade belicista e militarista de John McCain, Lindsey Graham, Bill Kristol, CIA e Evan McMullin. Por isso, não deve surpreender que uma lei proposta pela belicista mor Lindsey Graham para impedir que Trump revogue restrições contra a Rússia tenha mais patrocinadores democratas do que republicanos.
Por isso é tão emblemático que democratas, em nome da “resistência”, se aliaram a neoconservadores, agentes da CIA e ex-oficiais do governo Bush: não porque coalizões com indivíduos moralmente corrompidos devem ser evitadas, mas porque revela a mentalidade política adotada em nome de derrotar Trump. Eles não estão “resistindo” a Trump com uma ideologia de esquerda ou usando de ideias de apelo popular — por exemplo, se comprometendo a proteger regulamentações ambientais e de Wall Street que vêm sendo atacadas ou apoiando a revogação de acordos que geram desemprego, ou ainda exigindo que civis iemenitas não sejam massacrados.
Em vez disso, atacam Trump alegando nacionalismo, militarismo e belicismo insuficientes: comparando o desejo de evitar um confronto com Moscou com uma forma de traição (exatamente como fizeram durante a Guerra Fria). Por isso encontram tantas causas em comum com os maiores sanguinários militaristas dos EUA — não por ser uma aliança conveniente, mas pelas convicções que compartilham entre si (na verdade, muito antes da ascensão de Trump, neoconservadores já planejavam um realinhamento com democratas em um possível mandato de Clinton). O aspecto mais irônico — e subestimado — de todo esse espetáculo volátil é o quanto democratas têm de rejeitar e criticar um dos principais legados em política externa de Obama ao mesmo tempo que fingem não fazê-lo.